Sociedade



Lino Calixto Jussara ︎


Imagem:   

"Calixto" por Lino Calixto Jussara


Olho vivo faro fino!





 Contra-binariedade transceta e os percursos do esquecimento



O afastamento de corpos contra-binaries transcetas* dos espaços de cisnorma de produção de dinheiro e de subjetividade cria um espaço de subalternidade pouco estudado, principalmente quando o mais comum é dividir as corpas trans entre trans femininas e trans masculinas, com o pretexto de facilitar a compreensão das diferentes violências que atravessam tais corpos.

Tão pouco se tem dados sobre quantas pessoas transcetas* contra-binárias estão na prostituição (online ou presencial), desempregadas ou em situação de desnutrição. Quem são essas pessoas em quesito de cor/racialidade, ou melhor, como essas pessoas acessam a dignidade no jogo colonial?

Se essas pessoas estão afastadas da cisgeneridade que poderia às acolher dentro de “feminismos” e também longe de transcentros binários, como fomentar a potência de criatividade que está sendo desenvolvida por artistas racializades na luta contra a binarização e esquecimento compulsório das corpas com buceta?

Mundos estão sendo construídos por essas pessoas e estão sendo ignorados tanto pela violência cisgênera quanto pela binarização de alguns movimentos trans. Essas corpas contra-binárias tem ferramentas de camuflagem e sobrevivência que podem nos ensinar como recriar formas ancestrais de “gênero” mesmo frente ao sistema vigente. Essas pessoas  muitas vezes precisam se camuflar em binarismos para alcançar trabalhos e facilitar sua sobrevivência.

Qual é o peso de se forçar a ser o que não é para vivenciar minimamente a dignidade oferecida pelo dinheiro-binário?

Não há dúvidas que à frente dessa luta estão as corporeidades originárias, indígenas, ciganas, afrodescendentes e que antes de ter suas vivências acolhidas, seja por quem for, precisaram permanecer vivas.

Como é possível medir o valor da sobrevivência contra-binária?

Muitas vezes as histórias de feminismos se mesclam com as histórias não binárias e contra-binárias, como tecer em nossa memória o encontro  e o momento que nossas corpas se reconhecem não binárias e não pertencentes aos sujeitos que quiseram forçar a palavra mulher. E se ao rearticular esses termos e se apropriar do “ser mulher”, como não esquecer da recusa que outres podem ter acolhido?

Tivemos um exemplo de mais uma tentativa de esquecimento trazida pela reflexão recente da pensadora Djamila Ribeiro, que se posiciona contrariamente a utilização do termo "pessoas que menstruam" para as políticas de cuidado e saúde de corpos nascidos com útero. Esse posicionamento diz respeito a marcar a identidade MULHER ao referenciar-se a esta corporeidade e propõe que fazer uso do termo seria uma estratégia de esquecimento da história das "mulheres", um posicionamento altamente transfóbico, intersexofóbico e binarista.

Por se negar a agregar tanto outras vivências identitárias em corporeidades biologicamente semelhantes, quanto corpos biologicamente diferentes em uma identidade política semelhante [“mulher”], este posicionamento apresenta-se visivelmente marcado pela redenção à branquitude e/ou ao pensamento colonial sobre o binarismo das possibilidades de reconhecimento desses corpos: ou é “HOMEM” ou é “MULHER”. 

A disseminação desse pensamento é mais um ato de violência contra as vivências que se recusa ser enquadrada nos desejos culturais europeus/colônias/patriarcais/lgbfóbicos. E, para encerrar esse assunto "polêmico", citarei a frase de Okara Yby Potyguara: "Ninguém é uma pessoa que menstrua(...)". Somos muito mais que isso, porém a forma que nossa vivência uterina é tratada com descaso atravessa a todes cis ou trans.

Hoje termos como transmasculine, sapatrans, não-binarie, sapatão, sapatransbonde, transviade, ex-mulher, contrabinarie, boyceta são exemplos de termos utilizados para desenvolver diálogos sobre essa questão.

Como podemos mensurar como a criação de ferramentas linguísticas (em português, por exemplo) vem afetando a memória coletiva?

A cisgeneridade expressa que estamos fazendo bagunça. Dizem que estamos desprezando a história das mulheres, mas podemos garantir que estamos apenas expondo o processo que trouxe esse termo e seu posicionamento social ao que é hoje.

Por mais que esse texto pareça, para quem lê, apenas esbarrar em indagações, é um texto lembrete de que nada aqui é apenas dual, acolher as dúvidas sobre a história imposta na educação “formal” é o que fez com que pudéssemos avançar contra o esquecimento de nosses ancestrais.

Para trancetas contra-binárias que existem, se encontram e aprendem entre si, continuem contradizendo a história, HABLEM mesmo!

Assim como é uma questão de respeito chamar de Abya Yala o continente chamado em português de Américas e Pindorama ou Pindoretá o território denominado Brasil, essa reafirmação da existência contra-binária faz-se necessária entre todas as pessoas, pois deste modo reavivamos a noção histórica deste espaço e também nos afirmamos enquanto sujeitos do presente ao entendermos que desempenhamos um papel ativo no ambiente em que vivemos e este papel é inevitavelmente político.

Seguir o fluxo de esquecimento  é uma escolha, principalmente quando chegamos até aqui (buscando conhecimento sobre práticas de respeito mesmo em meio aos mecanismos opressores do mercado).

Os fundamentos da binareidade de gênero cis estão a serviço do sistema capitalista, tanto que a inserção  das mulheres cis brancas no mercado de trabalho alteraram e alteram a lógica da família e papeis até então fundamentados "cientificamente" sobre mulheridades.

Este ano, 2023, o IBGE  teve a oportunidade de perguntar quanto a gênero, mas  optou por não fazê-lo continuando a prática de esquecimento, pois os únicos processos diretamente governamentais de informação sobre a população atrelada a gênero são associados ao banco de dados dos cartórios de nascimento que perpetuam a prática de binarização compulsória de corpos recém nascidos.

Em alguns estados, pessoas não binárias já podem retificar seu gênero na certidão, porém, infelizmente, estes ainda são exceção.

É evidente a fragilidade da binareidade, no entanto, perde-se a dimensão da profundidade do pensamento contra-binário enquanto ameaça a lógica capitalista, já que a mesma ao ser evidenciada remonta a história das opressões de gênero. Tanto para a história supremacista da branquitude, da colonização, do imperialismo e as formas tenebrosas do "avanço tecnológico" para a destruição do planeta. 

O imensurável precisa ser pelo menos contemplado, o que tem sido feito é o contrário disso esquecido, ridicularizado, diminuído, como já  é visto a anos, no entanto, como nada aqui se acaba e sim renasce e dialogá  em novos termos, pressiona e restabelece-se fazemos jus a  necessidade de aumentarmos as alianças, relembrarmos histórias, conhecermos artistas e buscarmos conhecimento. 

É muito fácil dizer que não existimos quando a intenção é facilitar a arrogância do pacto cisgênero. No final do texto há um link referente a uma discussão entre a professora Khiara Bridges e o senador Josh Hawley e podemos reconhecer a forma como isso se dá. No entanto, mesmo em meio a desrespeito, a professora rebate e a discussão torna-se um instrumento histórico para que possamos analisar as minúcias transfóbicas do jogo de poder.

A kontrabinareidade não diz respeito apenas a pessoas transcetas, no entanto, por conta do processo de subjugação histórica das pessoas designadas mulher pelo sistema.

Faz-se necessária uma ênfase que drible a invisibilização dessa vivência, que não encerra em si mesma, mas nutre o caminho para um pensamento kontrabinárie descentralizado (na multiplicidade dos corpos endosexo e também intersexo).

São muitos os convites de mudança ativa a serem acolhidos. Aqui estabeleço apenas mais um pelas pessoas kontrabinarias, em especial as pessoas designadas mulher ao nascer(ou ao serem binariezades) neste território, Pindoretá.






*****

Referências e bibliografia para refletir:



*Kontrabinarie: https://www.instagram.com/p/CNS2gdcpzL9/?igshid=YmMyMTA2M2Y=

BISPO, Antônio. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: Universidade de Brasília, 2015. E também em https://m.youtube.com/watch?v=bhdV4u8Dt20

*Transceta:
termo apresentado a mim em uma conversa com o artista e pensador A. K. Ybyra'Y Tupinambá, como forma de abarcar vivências binárias, contra-binária e não-binarias entre pessoas com útero e vagina. 

A invenção das mulheres: Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Livro por Oyèrónk Oyěwùmí

Rumo a um feminismo descolonial. Artigo de María Lugones

Mulher, mercado de trabalho e as configurações familiares do século XX.  Profª. Drª. Fatima Itsue Watanabe Simões 


Revista de estudos TransViades

Reflexão sobre a reutilização do termo sapatão enquanto prática kontrabinaria

Professora Khiara Bridges em discussão com o senador Josh Hawley

Ângela Davis sobre feminismo que reconhece pessoas trans



Perfis de pensadores e artistas que ajudaram a desenvolver o pensamento presente no texto:




A. K. Ybyra'y Tupinambá

- Geni Núñez

- Okara Yby Potyguara

Khaos Figueiredo

Kuarasy

- Zure Gabriel

- Taliboy Ha

Uarê

Caru Di Paula

Liah Ribeiro

- Hugo Leonardo