Ninguem banca essa força!
A população do estado do Pará tem o incrível hábito de valorizar a cultura externa sem perder o apreço pela cultura local. Mas, infelizmente, o investimento financeiro se resguarda ao que vem de fora: recurso que deslegitima as vivências da população enquanto potência tecnológica e ancestral. Afinal, somos parte da maior floresta ainda de pé do mundo e queremos que assim permaneça. E se, até certo ponto, foi possível proteger o território ao longo de mais de quinhentos anos contínuos de exploração, vamos convir que algo temos a ensinar ao resto do mundo. Mas por que há grande recusa em nos ouvir e por que artistas de fora insistem em perpetuar o extrativismo estético em séries "folclóricas" ou em trabalhos sobre florestas sem ao menos reconhecer quem faz o que no território?
É chegada a hora de comentarmos sobre alguns acontecimentos de Mairi (Belém - capital do Pará): uma série de eventos que discutiu a potencialidade da juventude amazônida enquanto agitadora de possibilidades de reconhecimento das florestas como caminho para a vida em prosperidade. E este trabalho é difícil, mesmo para as diversas populações que habitam a chamada Amazônia. Aqui vivemos entre territórios roubados e urbanizados, pessoas esquecidas de suas ancestralidades e outras que estão cientes e em luta constante. Entre os apoiadores do agro e os defensores das florestas, somos ainda "amazonidas" e compartilhamos o bioma sem necessariamente compartilhar o pensar. Não apenas quem nasceu aqui, mas também quem se propõe a escutar e vivenciar o território com respeito.
Enquanto discutimos e criamos entre nós e em movimento, por fim, quem decide o que será feito, o que viverá ou morrerá são pessoas que estão no planalto, na ONU, na Europa, nas empresas multinacionais, nos garimpos, no sudeste e afins: no mundo todo mas não aqui. E quando a população se desloca para se dar chances economicamente melhores, passam por um processo de desterritorialização e desreconhecimento enquanto amazonida. Se desfazem de seus laços e nem sempre conseguem voltar - por vezes ainda usados enquanto totem de representatividade do ser amazônico.
Esse pensamento político sobre a Amazônia fez o atual presidente Lula sugerir que a COP30 fosse feita no território e, apesar de ainda estar em processo de ser decidido, foi acordado que caso aconteça será em Mairi tupinambá - Belém do Pará - em 2025 (a escolha será efetivada em novembro do presente ano). Os encarregados políticos da região já começaram a se mobilizar a respeito disso, pois aparentemente, há um interesse de mudar o caminho de morte e desvalorização que temos atravessado. Porém ambas as governanças tem suas contradições, visto que também discursam em favor da bioeconomia sem especificar como está será implementada e quem serão os benefíciarios, o que pode vir a legalizar atividades extrativistas mascaradas de "desenvolvimento" - já que mesmo no governo PT foi construída a Hidrelétrica "Belo Monte" no estado ainda que seus danos sócio-ambientais tivessem sido alertados.
Recapitulando a situação que fomos colocados nos últimos 6 anos, o aumento do desmatamento coincide com a diminuição de investimentos artísticos culturais no Brasil e mais ainda na região norte. Talvez seja pelo medo de ecoar atitudes autogestionadas pela Amazônia que as empresas se recusem a investir na cultura paraense? Por que os eventos não tem patrocínio mesmo movimentando milhares de pessoas e alimentando um fluxo de movimento turístico para o local?
É importante evidenciar aqui a grandiosidade dos festivais nortistas. Me direciono agora para o festival Psica que ocorreu nos dias 16, 17, 18 de Dezembro de 2022 para compreender qual peso esse movimento tem sobre a vida dos locais e como tal peso não corresponde ao valor capital dedicado a esses eventos.
Mairi é recheada de cultura, porém momentos como este festival congregam diferentes culturas e ao dizer isso me refiro ao investimento na escuta da diversidade. Abrangendo diferentes públicos, se dedica a investir em atrações locais ao mesmo tempo que dá a oportunidade para os moradores se encontrarem com artistas nacionais que raramente são convidados a eventos acessíveis na cidade. Mesmo que pela desvalorização da mão de obra local, muitos nortistas não possam investir 100 ou R$160 reais para comparecer em um evento que agrega 42 atrações musicais - ainda que o festival procure se manter o máximo acessível propondo outras ativações gratuitas na cidade, inclusive contratando a ganhadora do Grammy Latino LINIKER para cantar gratuitamente.
O evento ficou marcado por encerrar todos os dias de evento com as aparelhagens: respectivamente Super Pop, Principe Negro e Crocodilo, que são grandes exemplos da força da cultura popular local. Além disso, rolou o show de Melissandra que reuniu artistas LGBTQIA+ de Marabá (interior do Pará) para um espetáculo inédito de potência poética da travestilidade interiorana. Por fim realizou o show de Viviane Batidão e Gaby Amarantos que entregaram performance, voz e carisma arrebatando o público com os sentimentos do tecnobrega.
Ainda assim houveram incidentes de artistas de fora que não compreenderam a complexidade de um festival independente sem patrocínio no norte, porém o público logo mostrou sua rejeição a artistas com atitudes desrespeitosas pelo que estava sendo concretizado ali.
Não só o Psica mas também o festival Se Rasgum tiveram propostas que mesclam o gratuito com o pago e mesmo assim não obtiveram patrocínio das grandes empresas. O que nos faz considerar a dificuldade de produções menos tarimbadas se concretizarem na região, já que mesmo os maiores festivais são rejeitados pelos patrocinadores. Um pequeno apelo e agradecimento pelo que produtores e artistas locais têm dedicado a fazer pela população e para dar conta dos atrasos mascarados de progresso. Em especial as produtoras pretas, indígenas e as que focam em políticas culturais anti-transfóbicas. Artistas trans independentes têm movimentado a cena de Mairi e assim como os outros eventos não contam com patrocínio ainda são excluídos das rodas cisgêneras de fomento à arte e cultura na cidade. Um saravá as batalhas de slam e rap que movimentam a cidade: um saravá aos artistas do interior que sofrem ainda mais com o desmonte da cultura nortista.
Gostaria de poder falar mais sobre outros estados e suas produções no Norte pois acredito que temos muito a aprender entre nós, só que nesse jogo pela dignidade tudo vira um apelo, acabamos direcionando para os espaços que possuem ferramentas e dinheiro, enquanto isso vamos tentando nos unir.
Durante o texto menciono um evento específico que pude comparecer. Ainda temos mais recortes ao pensar classe, raça e gênero no que diz respeito às produções e artistas locais, mas vou deixar isso para outro momento, temos muito que pensar, para nos aliar aos artistas e produtores do norte.
Esse texto foi altamente inspirado nas reflexões feitas pela artista Nazas em seu Instagram que sempre denunciou a falta de investimento econômico e estrutural para artistas que vivem no norte, principalmente afro-amazônidas e indígenas das periferias e interiores. Além de também se inspirar nas falas das articuladoras culturais Norah Costa, Gabriela, Maria Letícia Manauara, Maria Flor no evento Juventudes Amazônicas da Unipop no dia 15 de dezembro de 2022 em Mairi no qual foi ressaltada a potência tecnológica das Juventudes Amazônicas.
*Eventos mencionados e produtoras independentes do Pará:
Festival Psica
Festival Se Rasgum
Juventudes Amazônicas/unipop
Cop das baixadas (evento que discute a realização da cop 30 e tem como protagonista as baixadas da cidade)
Na cuia produtora
Transbatalha
Battle Girl Power
*Formadores de opinião/artistas que contribuem com o pensamento do texto
(não é pra copiar, hein! É pra se ligar):
Nazas
Norah Costa
Gabriela Luz
Maria Flor
Hta Dhirua
Ybyra'Y
Labo Yana
Byxa do Mato
Marcely Fierce
Jean Petra
Renata Beckman
Rafa kennedy
Uyra Sodoma
Manauara Clandestina
Atratus
Melissandra
Jojô Pantoja
Emily Cassandra
Shayra Brotero
Tarciso Gabriel
Mc Pokaroupas
Xan Marçal