Comportamento


Ana Carolina Rodarte ︎



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© Copson Londan/ DTS

Hacking literário: a fanfic reescreve o mundo.



Propondo alternativas a histórias consolidadas, autores de fanfics subvertem a indústria de entretenimento, formam comunidades independentes de escrita e narram novas possibilidades de afeto e sexualidade.

Sempre me perguntei quais músicas estariam nas playlists de Mr. Darcy e Elizabeth Bennet se “Orgulho e Preconceito” se passasse nos dias de hoje. Meu envolvimento com a trama publicada por Jane Austen em 1813 é tamanho, que me apossei dela de todas as formas possíveis, do penteado que uso a adaptações das piadas que Lizzie troca com a irmã, Jane. Carrancudo e intelectual, Darcy ouviria tudo o que reiterasse seu refinamento: dos mais consagrados de Miles Davis aos mais cabeçudos do Radiohead e do Aphex Twin, o que faria os olhos de Lizzie rolarem, a princípio. E ele definitivamente seria um entusiasta do pós-punk. Impetuosa e cheia de ideais, mas muito mais acessível, a srta. Bennet acompanharia todas as bandas do circuito alternativo, das headlines de festivais às bandas locais que ela faria questão de conhecer, e saberia de cor todos os hinos de Kali Uchis e Pabllo Vittar. Ai dos carinhas indie que se aproximassem dela com poeminhas que repetem pra tudo quanto é gente!

Com esse mesmo desejo de ocupar e preencher lacunas das histórias que correm por aí, autores e leitores têm recorrido às fanfics (a.k.a. trabalhos transformativos). Em comunidades autogestionadas, autores profissionais e amadores usam os recursos ficcionais de outros autores para contar novas histórias, explorando as possibilidades de personagens e universos já existentes. E é assim, se apossando de narrativas do mass media para tecer sonhos próprios, que eles têm pautado, há décadas, a indústria de entretenimento e a literatura, formado autores como Neil Gaiman e N. K. Jemisin e conquistado leitores ávidos.

Em janeiro deste ano, o Archive of our Own (Ao3) — site fundado em 2008 pela Organization for Transformative Works que oferece assistência jurídica aos autores e se tornou um dos maiores portais de fanfiction do mundo — chegou a ficar fora do ar devido ao aumento no fluxo de usuários. Pra se ter ideia, em dezembro do ano passado, ele já contava com 1.7 bilhões de visualizações mensais. Em 2019, o Ao3 ganhou um Hugo Awards por Melhor Trabalho Relacionado, uma das premiações mais importantes da literatura fantástica e de ficção científica. Mas as conquistas e impactos desse tipo de produção vão além das comunidades de fãs.

Preâmbulo de uma história que já conhecemos


Narrativas e personagens nem sempre tiveram dono. A aranha Anansi, por exemplo, protagoniza uma série de aventuras ocorridas em diversas histórias da diáspora africana, assim como o trickster Joãozinho. Mas com a consolidação do copyright no século passado, como narram as editoras Lindsay Ellis e Princess Weekes, as discussões em torno da originalidade de obras ficaram um tantinho mais acaloradas, e a fanfic sublimou no horizonte literário.

A coisa ficou na cara quando as fanzines de ficção científica do início do século XX passaram a publicar as histórias de fãs de grandes obras do gênero. Anos antes, os fãs de Sherlock Holmes já se uniam às escondidas pra escrever histórias de seu herói favorito enquanto Conan Doyle não se resolvia com o detetive. Mas foi nos anos 70, com o lançamento da série Star Trek, que as fanfics começaram a ganhar a carinha que têm hoje. Elas eram escritas, em sua maioria, por mulheres, pessoas não-brancas e LGBTQI+, que não se sentiam representades pelas narrativas transmitidas na TV. E por esse mesmo motivo, por anos, as fanfics foram estigmatizadas como um fazer literário menor, típico de adolescentes e de quem não tem muito bom gosto. Ai, ai.

“Até os anos 90, o fã era estigmatizado, encarado como um sujeito passivo, histérico e acrítico. A partir dessa década, ele passa a ser visto como um sujeito crítico, com profundo conhecimento a partir do que ele consome”, conta a jornalista e doutoranda em Comunicação Daiana Sigiliano. O que mudou? Bom, o autor Henry Jenkins, também apaixonado por Star Trek, cansou dos estereótipos que a galera divulgava sobre o fandom da série, e publicou a obra “Invasores do Texto: Fãs e Cultura Participativa”. Nesse livro, ele conta que os fãs têm sim muito a contribuir com as tramas, e que agem como nômades invasores, construindo uma cultura própria a partir do que tomam de empréstimo, formando uma comunidade social alternativa. E por falar em escritores rebeldes...

Hackers sonham com máquinas elétricas de escrever?


Entre as estripulias de Pandora, a cachorra, Sofia Soter não esconde a empolgação ao conversar sobre sua vivência com as fanfics. Ela, que hoje é tradutora e autora, passou boa parte da adolescência escrevendo e lendo narrativas alternativas, compartilhando, com o mundo, seu entusiasmo por sagas como Star Trek e Buffy — Sofia é, aliás, uma das apresentadoras do podcast Boca do Inferno, que se destina a discussões profundíssimas sobre a jovem caça-vampiros. Sua vivência com as fanfics não só enriqueceu seu repertório como também a formou como escritora: “Fanfic é um exercício de leitura. Você tem que saber ler muito bem o enredo original para escrever uma narrativa reconhecível para o fã.”

Para ela, num geral, as práticas de escrita estimuladas entre as comunidades de fãs criaram alguns aspectos estilísticos que já vêm influenciando o mercado literário. Ela observa que, nos últimos anos, as publicações têm ficado mais focadas nos personagens e promovido algumas subversões de gênero próprias da escrita pra internet. Os livros “Vermelho, branco e sangue azul” e “One Last Stop”, de Casey McQuiston, por exemplo, conversam com a linguagem que a gente usa aqui, nas plataformas digitais.

Mas um dos impactos mais perceptíveis da fanfic sobre a literatura e o entretenimento jovem, para Sofia, é a diversidade, não só de gênero e etnia, mas também de origens: “No mercado literário, especialmente em relação ao público adolescente e jovem, tem pelo menos 10 anos que vemos nascer um mercado mais inclusivo, com mais (muito menos que devia, verdade!) histórias de autores e personagens LGBTQI+ e não-brancos. Temos tido também maior abertura a autores nacionais e histórias locais, que se passam no Brasil e abordam realidades brasileiras. Paramos de só importar modelos gringos”, compartilha a autora.

Diante de uma prateleira abarrotada de livros e bonecos Funkos dos seus heróis favoritos, Daiana Sigiliano mede, com precisão laboratorial, o processo que tem levado a essa mudança. A comunicóloga integra o Observatório da Qualidade no Audiovisual, um grupo de pesquisas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) que, dentro da produção seriada, estuda a fanfic. Monitorando interações e produções de fãs da novela brasileira Malhação, ela e seu grupo de pesquisas notificaram que esses usuários demonstram uma grande competência midiática, a ponto de corrigir o diretor e roteirista da trama, quando necessário.

“É impossível você pensar um conteúdo audiovisual contemporâneo sem considerar a base de fãs. Não só por causa da questão mercadológica e de consumo, como também de compreensão. Em uma certa altura da série ‘Game of Thrones’, por exemplo, eles precisaram contratar um fã para localizar os roteiristas sobre as nuances daquele universo ficcional”, compartilha Daiana.

Para ela, a fanfic é um palco de experimentação, tanto para autores já consagrados (e que escrevem com pseudônimos) como para quem tá começando a colocar suas histórias nesse mundão. “As plataformas de fanfic foram feitas para serem colaborativas, e ali, os fãs aprendem informalmente sobre uma série de questões importantes para uma boa escrita. Mas se você produz algo pro fandom, você não pode se beneficiar de maneira financeira.”

Essa movimentação fora dos limites do mercado é capaz de mexer até mesmo com as ações engessadas de patrocinadores e emissoras, que teimam em encerrar subitamente produções e evitar alguns temas. Animada, Daiana nos contou que, pelos canais extraoficiais de fanfiction, os fãs de Malhação têm feito campanhas para que os colegas tirem o título de eleitor e removam Bolsonaro da presidência. “Um ato de resistência!”, pontua ela, os olhos brilhando.

E é com essa mesma aptidão pra movimentar multidões que as fanfics vêm influenciando até mesmo produções originais. Como aponta uma análise do The Take, produções como Bridgerton, Dickinson e Homem-Aranha no Aranhaverso, partiram das demandas manifestadas em fanfics para propor tramas mais plurais e capazes de dialogar com os dilemas que a audiência vive hoje. 

Trazendo as próprias experiências, Sofia Soter conta que as trocas em plataformas como o Livejournal, Wattpad, Tumblr e Spirit proporcionam uma relação mais desprendida com a escrita, o que acaba colaborando também com a formação dos autores. “Quando você escreve pra publicar, é muito mais difícil desapegar de ideias. E é parte de ser escritor desapegar de ideias. A escrita de fanfic coloca menos pressão sobre o que você tá fazendo. É valorização da escrita pela escrita.”

Foi por meio de desafios literários que Sofia mergulhou nas pesquisas de Jung (“Queria escrever uma fic com o Chris Pine. A mãe dele é terapeuta junguiana!”), conheceu grandes amigos e descobriu que outras pessoas também viam o amor e a sexualidade sob um espectro mais amplo do que lhe fora apresentado até então.

Fricção e fantasia: a fanfic e o sexo


Foi também no ambiente apaixonado e plural das plataformas de fanfic que Sofia encontrou possibilidades de afeto múltiplas e diferentes da norma. “Ali, eu pude ler formas de se relacionar com a bissexualidade diferentes e encontrar entendimentos próprios sobre isso. Esse aprofundamento nos personagens, próprio das fanfics, me permitiu fazer explorações precisas sobre emoções e experiências minhas que eu não saberia escrever ou ver por uma ótica externa. Palavras e descrições para a forma como eu vivo meus afetos. Eu me percebo e percebo o mundo em espaços de muita ambiguidade e indefinição.”

Assim como Sofia, muitos jovens colorem suas narrativas de si por meio do que leem nas fanfics. Seja por meio de tropes como enemies to lovers (“inimigos a amantes”) a tramas com recursos narrativos mais subversivos, as fanfics oferecem um espaço pra narrativas sexuais plurais, escritas de maneira também plural, e com distanciamento suficiente pros leitores se sentirem à vontade pra explorar, sem didatismos ou estereótipos. Afinal, ali, autores queer, PoC e PcD encontram espaço pra escrever possibilidades que o mainstream, atravessado pela cis-heteronormatividade capacitista, não lhes concede.

“A escrita coloca as pessoas em posição ativa em relação à própria narrativa, o que as torna mais maduras em relação aos assuntos abordados. Elas começam a conhecer mais sobre quem elas realmente são, usando as palavras delas. Quando as crianças brincam, elas estão treinando para uma vida futura. De maneira semelhante, nesse momento da produção artística, as pessoas também acessam esse terreno experimental. Escrevendo, a pessoa se coloca ativamente em diferentes situações, buscando entender o que ela pensa sobre o assunto e como ela se sairia”, compartilha Isabela Vieira, psicóloga, professora e coordenadora do Instituto de Saúde Sexual - Educação Continuada (ISSEDUCA) e pós-graduanda em Sexualidade Humana pelo CBI of Miami.

Com um desprendimento que faria orgulho à personagem de Gillian Anderson em Sex Education, Isabela explica que a pluralidade dos afetos e encontros sexuais descritos nas fanfics pode ser pra lá de benéfica pra quem está disposte a descobrir mais sobre a própria sexualidade. Mas há ressalvas: assim como qualquer narrativa, as fanfics não deixam de ser atravessadas pelos tabus e estereótipos que estruturam nossa sociedade como ela é. Por isso, pra ela, tão importante quanto narrativas mais plurais de afeto e sexualidade é uma educação sexual sem moralismos, que considere a unicidade e as possibilidades do indivíduo: “O mundo das fanfics não termina em si mesmo. Essas histórias mexem com você. É uma vivência muito mais rica do que o pornô, que tem um fim em si mesmo (‘acabei de gozar ali e tchau’). Estar em contato com a ficção gera comunicação e questionamento, e não há nada melhor pra combater preconceito do que o conhecimento.”

E se a imaginação encontra um campo fértil nas histórias escritas por fãs, já está mais do que na hora de autores e pesquisadores de comportamento e sexualidade deixarem os estigmas de lado e explorarem essa plataforma para dialogar com seus públicos. Isabela acredita que, com uma troca mais honesta entre autores de fanfic e especialistas, mais e mais narrativas entrarão em sintonia com a amplitude que a sexualidade pode assumir.

“A sexóloga Helen Kaplan dizia que a sexualidade é formada por dois F: um f minúsculo e um F maiúsculo. O f minúsculo é o da fricção, ou seja, o toque. E o F maiúsculo é o da fantasia. Ou seja, a fantasia diz muito mais que o toque. Esse F da fantasia é estimulado quando você tá escrevendo ou lendo esse tipo de material. E o impacto positivo das fanfics está relacionado ao desenvolvimento dessa fantasia. Ela precisa ser explorada”, diz Isabela com um tom tão didático quanto urgente. 


Enquanto encerro este texto, no cantinho de uma outra aba, Mr. Darcy e Elizabeth dançam juntos ao som de uma conhecida balada de Brittany Howard. Os balões restantes da festa, que se encerra mansa, descansam no chão, contentes com o que já foram e tristes pelo que não verão. Há muito não vivo uma festa ou danço com alguém, mas sinto daqui essa palpitação singular que só quem dança juntinho sente. O mundo tátil anda um tanto árido, mas nesse momento de reescrita do mundo, a imaginação se mostra mais importante do que nunca. Porque é aqui, nesse território onde as ideias correm soltas, que a gente toma esse mundo que nos deram e escreve uma coisa nossa; esperançosa, bonita e com a nossa cara.