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Gabriela Campos︎

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©  Crimson / Adobe Stock

Entre dízimos, consagrações e mapas astrais




Relações entre bem espiritualidade & bem e$$tar



Mercúrio está retrógrado? Não sei, mas se a lua estivesse em peixes nos diria que são tempos de pseudociências, incensos e fé. A espiritualidade tem atravessado catalisadores sociais ao longo dos tempos, propondo ser uma jornada íntima para a busca de si. Esse bem-estar espiritual, em primeiro plano, configuraria um conjunto de valores e crenças que fornecem um senso de propósito e significado à vida, usando esses princípios para guiar suas ações. Mas na rua, espiritualidade e bem estar estruturam discussões mais profundas do que ser ou não ser.

A conversa de que as gerações passadas estavam se afastando da religião cai por terra cada vez que somos impactados por novos processos de evangelização através das redes sociais. Se anteriormente, religiões serviam como ferramenta colonial de dominação, manipulação e consequente apagamento social de demais culturas, agora, a digitalização da fé é tida como instrumento de manifestação de individualidades, sem perder o caráter de comunidade que lhe é característico. É importante, nessa perspectiva, nos atentarmos ao fato de que a configuração da religião enquanto instituição é uma norma ocidental branca que validou [ou desvalidou] crenças, práticas e organizações comunitárias no mundo. E é fácil de perceber quando, por exemplo, em 2017, o mundo tinha 2,3 bilhões de cristãos, o Papa continua sendo tratado como a maior autoridade religiosa e vários países seguem tendo o cristianismo como parte da estrutura do estado. O fundamentalismo religioso estimulado por interesses macroeconômicos movimenta [e continuará movimentando] dinâmicas territorialistas no Oriente Médio desde o tempo do império e demoniza outras organizações espiritualistas que têm origens divergentes da catequização apostólica e/ou evangelizadora. 

Mas a espiritualidade, há um certo tempo, não fica só atrelada às práticas religiosas. É também uma busca por identidade e pertencimento, o que, nas mãos erradas, acaba abrindo as porteiras do charlatanismo e outras práticas criminosas: de norte a sul global: Keep sweet: Prey and Obey  e Nxvim nos EUA; Comunidade Lucas e João de Deus, no Brasil. Assim, comportamentos holísticos surgem e dominam os espaços de conversa sobre bem-estar. Medicinas tradicionais asiáticas e práticas religiosas africanas sofrem recorrente romantização, consequente esvaziamento pelo Ocidente sendo apresentadas [ou melhor, sendo comercializadas?] como medicina alternativa ou Nova Era.

À esse movimento também podemos atrelar a fé em seu estado mercadológico, como estrutura de relação neoliberal já que 10% do seu salário  é capaz de te deixar mais pertinho do lado de deus pai todo poderoso criador do céu e da terra. Barras de ouro, botas de python, tudo isso sustentado pela ideia de depositar o retorno da libido despendida no trabalho como meio de ligação a algo muito maior. Ritualísticas tradicionais também entram na dança e o "renascimento" psicodélico te leva a lugares inimagináveis mesmo dentro da sala do consultório.

Mostrar-se aberto a discussões não convencionais sobre saúde e ciência é ir além de uma identificação com o discurso “good and positive vibrations”. Muitas vezes, esse movimento precisa partir de uma mudança interna motivada por um cenário que abrace os anseios individuais. Essa abertura a novas alternativas de bem-estar posicionam sujeitos a uma inclinação libertária que se desprende da ciência, alimentadas principalmente pela insatisfação política: o maior ponto convergente entre práticas ditas de pré relacionadas à esquerda e alinhamentos conspiratórios de direita. Não te parece contraditório que alguns nazistas tenham apreço pela yoga e/ou que no Evangelho Segundo Espiritismo de Allan Kardec constam declarações racistas?

Todo mundo ficou em choque quando Nikola Djokovic não pôde entrar na Austrália por não ter se vacinado. Mas ninguém contestou o fato do mesmo acreditar na movimentação de objetos com a força da mente. Atletas como Kyrie Irving, do Brooklyn Nets, e Kelly Slater, 11 vezes campeão mundial de surfe, são pessoas com alta performance e rendimento proporcionados possivelmente por dietas balanceadas, exercícios além do regular e dedicação exclusiva ao que praticam. É extremamente negacionista acreditar que seu histórico de atleta vai te deixar apenas com uma gripezinha [bolsy nós não esqueceremos].

Mas ao passo que o movimento conspiratório expande, surgem pessoas motivadas a desmistificar a série de equívocos proliferados principalmente nas redes sociais. Figuras religiosas de instituições tradicionais [algumas, nem todas] estão incorporando a luta por justiça social e climática, com respaldo sóciopolítico e científico nos seus discursos, como é o caso do Pastor Henrique Vieira, o Padre Júlio Lancelotti e até mesmo o Papa Francisco.

Para isso, todo e qualquer caminho em busca de uma vida dita equilibrada, em prol do bem-estar bem [ou wellness, como preferir], os questionamentos e as contradições podem melhorar a capacidade de empatia e de entendimento enquanto indivíduos numa comunidade. E a resposta pode estar na raiz da questão. Saber de onde viemos e para onde vamos, para além de consumirmos produtos pasteurizados ao alcance das mãos auxilia na desmistificação das novas [e não tão] novas narrativas de bem-estar. Já dizia Emicida: "quando os caminhos se confundem, é necessário voltar ao começo".

Ainda que, de contradições, o inferno esteja cheio, questionar é parte da jornada de quem quer subir aos céus.