Wanessa Yano ︎




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Cores & Valores


 
A blusa custa $2580,00 + a misoginia de brinde


A moda, entre suas muitas funções, data fatos históricos por meio do vestuário, construindo sistemas de comunicação, e narrativas que estabelecem padrões discursivos e simbólicos capazes de influenciar as dinâmicas sociais. Ao longo do tempo essas dinâmicas vem promovendo a manutenção de uma estrutura hegemônica e quando existe a pequena e remota ameaça à "ordem" através de novas representações minoritárias entre os lugares de poder, as relações pré estabelecidas entram em conflito e escancaram os valores/padrões mantidos nas entrelinhas, envoltas em um mecanismo estrutural de dissimulação.

E aí quando passamos a nos deparar com disputas discursivas pautadas em tantos preconceitos disfarçados e não limitados às expressões da opinião pública, tomam a superfície as ferramentas que operam e influenciam a formação do nosso senso crítico, como os veículos de comunicação tradicionais.

E nestes últimos meses quase tivemos um colapso nervoso coletivo sofrendo de ansiedade com futuro que nos aguardava conforme o resultado das eleições. Eis, que fomos sobrecarregados de informações que variaram entre as fakenews e as fanfics da nossa própria mente: nos encontramos em um jogo onde ganha aquele que fizer menor esforço para manter a sanidade e o réu primário intacto com tanta gente pedindo intervenção militar e não aceitando o parecer final das Forças Armadas, que segue afirmando não haver inconformidade nas urnas. Ai! Que gente chata!



A candidatura de Lula à presidência nos dá o sentimento de alívio e um respiro à nossa existência: sim, existe a possibilidade de retomarmos o fôlego para seguir adiante de um futuro democrático [mesmo sabendo que o caminho não será tão simples mediante as consequências do retrocesso econômico e social que vivenciamos]. A governança de Luiz Inácio inicia com um tom de comprometimento às existências dissidentes de forma sensível dado os sentimentos e valores ultraconservadores manifestados pelo ex-presidente e seus simpatizantes e que ainda ecoam em diversas camadas da sociedade brasileira inclinados à manutenção do projeto hegemônico neste país [bando de reaça!]

Neste sentido, a alternância de poder acontece no primeiro plano sob a questão de classe e de gênero uma vez que o futuro presidente e a sua companheira de vida, Rosângela da Silva, a Janja, não ascendem das tradições sociais desejadas para pertencer à elite brasileira: seja a partir da estética ou do discurso a ela vinculado onde suas respectivas imagens estão associadas à símbolos distantes da normatividade. Deste modo, intensas críticas ocorrem atreladas aos discursos de ódio que seguem transitando como opinião impositiva da demarcação de espaços de pertencimento.

Um exemplo disso foi a crítica realizada pela jornalista Eliane Cantanhêde, a  Janja, apontando o excesso de espaço da futura primeira-dama na participação dela nas atividades de Lula, levantando à tona a misoginia e o machismo ainda existentes. Cantanhêde, também, questiona “qual é o papel da primeira-dama?”  De fato, esta pergunta surge quando um homem assume o poder e apesar da rara presença feminina na presidência, o lugar onde o primeiro-cavalheiro assumiria nunca seria contestado na mídia. Com isto, a Ex-presidente Dilma Rousseff em uma thread no Twitter em resposta a jornalista explicou que ao “exigir das primeiras-damas que sejam silenciosas é reproduzir o pior da misoginia e do machismo”. E, não muito distante disso, recebeu diversos comentários do mesmo nível de apoiadores do ex-presidente B***ro.

Em contrapartida, cabe analisar não só o senso-comum como também  o discurso da mídia cheio de artimanhas classistas que se revestem em misoginia e machismo ao apontar o valor da blusa da Misci [marca autoral brasileiríssima] que Janja usava na entrevista ao Fantástico neste domingo [13/11/22]. Sabe-se que a moda é um dispositivo visual que auxilia e valida o discurso oral e partir dessa lógica, o classicismo aqui está atribuído a desvalidação da história de vida de Lula, acenando para o desejo fetichista da permanência do futuro ex-presidente no lugar do pobre. Já a misoginia e o machismo deferidos nas entranhas à Janja a tornam o ser que “desvalida” a historicidade de Lula, por utilizar uma blusa equivalente a R$2580,00.

É de conhecimento de todos por dentro do sistema de modas como a imagem da Janja pode elencar os valores da marca e também expandir o cenário atual da indústria no Brasil. Seria, então, uma construção procedente e necessária do que deveria ser o tal Brazilcore? Uma vez em que Janja já demonstrou interesse e consideração com a moda nacional desde o seu casamento com Lula em maio deste ano, onde usou vestido produzido pela estilista Helô Rocha, com bordados com referências ao luar do sertão, feito pelas das bordadeiras do Timbaúba – RN.

E de fato, existe alguma função no papel da primeira-dama? Oficialmente o nome atribuído é Consorte de político e não possui nenhuma função administrativa governamental. O papel de primeira-dama ou primeiro cavalheiro é uma titulação e função social no Brasil. Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo em Todas as Mulheres dos Presidentes falam sobre a história pouco conhecida das primeiras-damas do Brasil desde o início da república. Apontam que a esposa do principal líder do país continua sendo coadjuvante — quanto mais bela, recatada e do lar for, mais feliz estará a nação. Apesar da subversão ao estereótipo misógino e machista que algumas ex-primeiras-damas reproduzem, como o fato de não terem origem abastada ou então possuírem alto nível de estudo, seguimos acompanhando a ausência de uma primeira-dama-negra brasileira, diferentemente da posição presidencial que já foi ocupado por Nilo Peçanha, o 7º presidente do Brasil, negro - oriundo de favela [Morro do Coco] que, por fim, se casou Anita Peçanha - branca, herdeira da aristocracia do Campos dos Goytacazes – RJ.

Apesar da ausência histórica de mulheres negras na posição de primeira-dama do Brasil, é indiscutível a influência mundial de Michelle Obama, nome mencionado por Janja como admiração dada a sua atuação política no governo Obama. O fato é que já se passaram mais de doze anos desde que Obama se tornou o primeiro presidente negro dos EUA e que Michelle Obama assumiu o posto de primeira-dama, e eles seguem ressignificando os imaginários símbólicos de representação por estarem na mais alta imagem do poder. Passaram, então, a definir valores políticos, sociais e morais no mundo ocidental. A questão racial está em Everybody loves Michelle Obama, but nem todo mundo está disposto a conviver com mulheres negras em posição de poder, já que posicionamentos obstinados são deturpados e lidos como emoções "incontidas". Atacada constantemente a ponto de se colocar como coadjuvante, Michelle relembra em seu livro o quão estava exausta pela imagem que havia lhe imposto, ela diz: "Serei a esposa normal, que aparece só nos grandes eventos e sorri. Talvez fique bem mais fácil para todo mundo.” Em seu exercício de autoanálise, percebeu a atmosfera misógina, pois ninguém criticou Obama pela forma que falava e automaticamente presumiam que Michelle deixaria o seu lugar de matriarca e não faria nada além de artesanato com as filhas na condição de primeira-dama. Em confluência com a alteridade, a ex-primeira-dama, sabia do poder de se comunicar através das roupas e afirmou que o poder de uma primeira-dama é uma coisa curiosa — suave e indefinido como o próprio papel. […] minhas roupas importavam mais para as pessoas do que qualquer coisa que eu tivesse a dizer.

Ao mapearmos alguns desses discursos enxergamos claramente os acordos realizados “por debaixo dos panos” que ultrapassam a leitura óbvia fantasiados de senso comum e constroem muralhas de misoginia, machismo e racismo e que não isentam cada uma destas mulheres por estarem em lugares de alto poder.. e seguem mais uma vez se articulando em lógica dissimulada.