Agoniza, mas não morre”
todo ano as escolas na avenida, o coração ritmado com o samba, ansiedade e planejamento para curtir os bloquinhos: esse é o carnaval, que movimenta aproximadamente R$ 8,1 bilhões no país, que é considerado o “natal do turismo" e que também, ao longo do ano, gera trabalho em diversas comunidades periféricas, sendo um dispositivo importante para a compreensão das dinâmicas sociais, políticas e raciais no Brasil.
apesar de ser a galinha dos ovos de ouro, trafega entre os conflitos da manutenção cultural vs colonialismo e o neocolonialismo, e isso é socialmente sentido de forma simplista, ao observarmos o acompanhamento do samba, enquanto memória coletiva de uma geração. Um exemplo disso é a geração Alfa, que possui pouca relação e memória afetiva/musical com o samba. esse distanciamento, pode ser compreendido pelo processo institucional de desafricanização do samba, instituído no início da república. na prática, esse movimento significou a ânsia pela condução da imagem de cidadania à modernidade desejada, explicitamente ocidental. o moderno, portanto, foi e é sinônimo de desafricanização y todo costume, manifestação ou prática africana, ou com influência afro, foi moderado, quando não fosse possível extingui-lo. fez parte desse empreendimento a substituição da prática-jogo do entrudo, já tradicional no fim do 19, pelo carnaval à la Veneza, com desfiles, figurino, música y narrativa destinados a exaltar uma história e cultura europeia. em 1880 foi emitido, pelo Conselho Interino do Governo, um documento nomeado PROVIDÊNCIAS CONTRA O ENTRUDO, onde é possível notar a dicotomia que orienta o desejo da sobreposição do carnaval sobre o entrudo: primitivo y moderno, africano y europeu.
estas intenções se vincularam aos primeiros Clubes Carnavalescos que desfilaram no carnaval soteropolitano com evidente valorização da Ópera, Valsa, Música Clássica y, como o desejo moderno pedia: substancialmente industrial y urbano. a elite letrada, bastante envolvida, se via incubida da missão de transformar em prática y imagem o ideal almejado, que incluía necessariamente uma postura racista y eugenista, mesmo no carnaval. para se ter uma ideia, no primeiro desfile do Clube Carnavalesco Fantoches da Euterpe (c.1885), foi narrada e representada a entrada de César em Roma após vitória contra os germânicos [ou bárbaros na época] em 49 antes da era comum (AEC). em 1889, optou-se pela imagem francesa do renascimento y em 1904 pelas figuras y mitos greco-romanos da baixa idade média. 19 anos, de 1885 a 1904, de elaboração da proximidade entre a nacionalidade em construção y a cultura eleita como referência.
paralelo a isto, todavia, ocorria também uma experiência que se interessava por outras referências representativas. do perseguido entrudo, mas também da ocupação expressiva das ruas pelos terreiros, batuques y afoxés, derivou-se uma relação com o carnaval a partir de uma perspectiva não-branca y não-ocidental. foi comum a todos os modos o uso de instrumentos como berimbau, ganzá, bumbo y atabaque, assim como variações de músicas sincopadas de matriz africana, englobadas como batuques ou lundus, categorizadas, posteriormente, como maxixe y samba.
Apesar de não manterem relação direta com terreiros de candomblé – como era o caso dos afoxés – adotavam estruturas simbólicas, lúdicas e ritualísticas características desses espaços, como as músicas e danças. Além do mais, frequentemente incluíam nas suas apresentações personagens feiticeiros com o intuito de pedir proteção e afastar as más energias. Foi assim em 1897, quando a Embaixada Africana apresentou, no encerramento do seu desfile, o “poderoso Muquichi ou desmancha-feitiço”, que conduzia uma “significativa chave de ouro” para “afastar da Embaixada o azocri dos olhos máos”. Na edição de janeiro de 1898, o jornal Correio de Notícias, sugere grandiosidade e aclamação para as apresentações da Embaixada, assim como a aceitação e aplausos por parte dos públicos.
vale ressaltar que, mesmo contando com inúmeras afinidades com as práticas dos Candomblés, os clubes uniformizados negros não eram afoxés. Os afoxés não possuíam muitos integrantes e estavam geralmente vinculados a algum terreiro. Já clubes uniformizados negros, como a Embaixada Africana, tinham organização (carros, cavalaria, fogos de bengala e outros elementos) e temática complexa e diversa dos afoxés. Apresentavam-se mostrando uma África tida como civilizada, em linguagem próxima aos clubes brancos e adaptando elementos expressivos das culturas afro-brasileiras. Não havia, no entanto, conflitos entre as duas formas de manifestação e é possível que, posterior ao período que foi estudado, as formas dos clubes uniformizados negros tenham influenciado os afoxés.
A Embaixada Africana conseguiu criar um modelo de representações de uma África tolerada, sendo também referência para que outras manifestações driblassem o controle público e levassem às ruas práticas e valores quase sempre invisibilizados.
por conta da Revolta dos Malês (1853), o estado se movimentou a fim de desfazer os pequenos agrupamentos dos libertos/negros de ganho, por acreditarem que a articulação da revolução havia sido organizada através desses encontros. por isso, algumas leis foram estabelecidas a fim de conter e controlar a população negra no Brasil, como o Decreto n.º 847 em 1890, que estabeleceu a lei de vadiagem, onde "vagabundagem" se torna um delito especial, subordinado à (sic) sua existência aos três seguintes elementos: 1 °. Falta de domicílio certo; 2°. Não possuir meios de subsistência; 3°. Não exercer profissão, ofício ou qualquer mister em que ganhe a vida. As consequências da publicação desta lei, fora sentida em todo o território nacional, por comungar com o projeto eugenista. nunca houve descrito na lei que o samba seria um crime, o que ocorreu foi o direito ao estado de perseguir quaisquer manifestações racializadas e aí sim, por consequência, o samba, formatando desta maneira a politização do samba, não só em Salvador, como também na pequena áfrica no Rio de Janeiro, onde o surge o samba com as Tias Baiana que, dentre elas, encontramos Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como Tia Ciata. Já em São Paulo, o samba origina-se em Pirapora do Bom Jesus, zona rural de SP, conhecido como samba de bumbo, onde o grave [bumbo] sai da marcação rítmica e ganha destaque como solista.
com a falha do processo eugenista, e o anseio do Estado em tornar-se "Paris remodelada", através da Belle Époque após o declínio da monarquia fez com que o Brasil, passa-se a assimilar o mito da democracia racial que deu continuidade no projeto de desafricanização do samba e do carnaval. [tempos depois, Lélia Gonzales e Abdias Nascimento se tornaram vozes proeminentes no assunto.]
por conta da marginalização e criminalização as articulações do samba e dos artistas racializados de diversas linguagens estavam circulando entre essas cidades em períodos que antecedem a semana de 22, onde, a exemplo disso, nos deparamos com nomes como o de Lima Barreto, Heitor dos Prazeres [que além de sambista foi pintor] entre outros. entretanto as perseguições a estes grupos eram a acirradas e até os anos 40, muitas mães de santo, capoeiras, e sambistas foram presos, um exemplo das prisões de sambistas que ocorriam por conta da lei citada, é narrada em um samba de 1938 interpretado por Zeca Pagodinho — Delegado Chico Palha. isso demonstra a dinâmica social legitimada a partir 1941, quando o decreto nº 847, se tornou a Lei das Contravenções Penais intensificando a criminalização destas movimentações culturais, por meio do Art.42 que diz sobre perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios, sob o abuso de instrumentos sonoros, ou exercer profissão ruidosa, ou seja, fazer samba.
com o passar do tempo as dinâmicas de criminalização foram remodeladas em decorrência da aproximação da elite do samba, quando então é nomeada autêntica musica brasileira sob versão da bossa nova que, segundo Tom Jobim, demonstraria certo avanço, já que o samba negro do Brasil é muito primitivo. Segundo ele, podemos “chamar a bossa nova de um samba limpo, lavado”. [ e eis que temos, o sucesso internacional, Girl From Rio]. Mas, a desafricanização não se resume apenas a bossa nova, teremos também os processos estéticos através da retirada de imagens de pessoas racializadas em postos de destaque no carnaval, leiam-se as rainhas de baterias, porta- bandeiras e destaques de carros alegóricos. Além disso, a alteração dos postos de liderança e criação, como as diretorias e carnavalescos.
O samba e o carnaval são sinônimos de política e fé por meio da celebração, prontamente a serem utilizados como dispositivo de educação, pois, através das composições, entendemos a herança cultural de diversos povos, críticas sociais e a história como um todo.
O samba nasceu porque existe a política [...] O samba existe para que a gente consiga viver melhor e para que a gente entenda o Brasil como ele é — Teresa Cristina.
** a ausência de letras maiúsculas neste artigo é uma preposição política.